Um santuário para as toninhas
Mar de Jurubatiba abriga última população do estado e deve ganhar área de proteção
Um dos maiores especialistas em toninhas, o único golfinho ameaçado do Brasil, o pesquisador da FIOCRUZ Salvatore Siciliano, nunca viu sequer uma delas nadando no mar. Já para o pescador Amaro Jorge, de 47 anos, a cena não é rara. Justamente no litoral do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, no Norte Fluminense - onde vive o pescador -, estão concentradas as poucas toninhas que restam nos estados do Rio e do Espírito Santo. A região, estratégica para a preservação da espécie, deve ganhar a primeira área de preservação do país voltada para o cetáceo.
A melhor solução, para um grupo de pesquisadores, entre eles Siciliano, é a ampliação do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba. A proposta já foi formalizada, tem o apoio da Secretaria de Estado do Ambiente, do Instituto Nacional do Ambiente e conta com a simpatia da própria ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. Mais do que proteger as toninhas, outras espécies, de tartarugas a aves migratórias, também seriam beneficiadas.
- Se depender de mim, sai a proteção à toninha (em Jurubatiba). Vamos ver qual é o melhor formato, existem muitos interessantes que podem ser adotados - disse a ministra. - Queremos avançar em uma nova agenda sobre oceanos, apostei muito (na Rio+20), mas acabou não saindo uma boa decisão.
Criar uma área de preservação para as toninhas é urgente, dizem ambientalistas. Apenas 46 delas foram avistadas no litoral carioca e capixaba por especialistas no último sobrevoo realizado para a contagem da população, entre dezembro e janeiro. No total, os pesquisadores calculam que existam 2 mil nesta região: menos da metade do mínimo considerado seguro, cerca de 5,5 mil. A maioria delas vive no litoral de Jurubatiba, Parque terrestre que atualmente tem 44 quilômetros de costa.
A observação feita nos sobrevoos, de que as toninhas se concentram no Norte do estado, está em linha com observações em terra. O maior número de carcaças do cetáceo é encontrado nesta área de Jurubatiba.
- Este litoral oferece habitat ideal para as toninhas: abrigo, poucos barcos e impacto.
As toninhas praticamente desaparecem de áreas perturbadas - explicou Siciliano. - Isso praticamente justifica a criação de uma unidade marinha. Essa unidade é a chance de oferecer a sobrevivência às toninhas. Não sobrou outro lugar. Ou é isso, ou mais nada.
Não adianta, por exemplo, criar áreas marinhas em Búzios, onde não há toninhas.
A maior ameaça às toninhas é a pesca acidental. As redes colocadas para capturar peixes acabam prendendo os mamíferos, que morrem sem ter como respirar debaixo d'água. Os últimos dados disponíveis, de dez anos atrás, mostram que 110 toninhas morreram nesta região, quando o número não poderia ultrapassar 40. Para este cálculo, as estimativas estipulam como aceitável 2% das mortes causadas pelo homem.
Do seu pequeno barco de madeira, saindo para mais uma pescaria, o pescador Amaro Jorge também reclama da poluição e de atividades industriais, que prejudicam sua atividade. Mas está acostumado com as toninhas.
- Sou pescador desde que me entendo por gente. Já vi muita toninha no mar, acho que o número delas não aumentou nem diminuiu.
Proteção ambiental se estende para toda a cadeia alimentar do cetáceo
A toninha está no topo de uma complexa cadeia alimentar, que também precisa ser preservada, alerta o diretor do Núcleo de Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental da UFRJ em Macaé, Francisco Esteves. Entre as principais ameaças, ele cita a pesca predatória, a destruição do fundo do mar por causa de práticas agressivas, como o arrasto, sobretudo na época do camarão. A criação de uma reserva marinha, mesmo que voltada para o cetáceo, também beneficiará várias espécies.
As agressões ao meio ambiente marinho vão muito além da ação de pescadores. A região sofre com a poluição de várias origens, desde o despejo de esgoto ao óleo lançado por embarcações no mar.
Mesmo a degradação de áreas terrestres também causa impacto em regiões marinhas.
Por exemplo, a retirada de florestas, sobretudo nas áreas de amortecimento do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, cria uma sucessão de agressões ambientais. O solo sem vegetação fica muito mais exposto à erosão. Quando ocorrem chuvas, elas carregam mais barro e lama para os rios, as lagoas e o mar. Isto reduz a transparência da água e provoca o desaparecimento de algumas algas, a base da cadeia alimentar.
- A nossa preocupação não está restrita à toninha, há todo um ecossistema marinho da costa de Macaé e região que precisa ser observado. A alimentação da toninha depende de uma longa cadeia, que começa com bactérias, chega nas algas, aos organismos microscópios e até pequenos camarões e peixes que servem de alimento para o cetáceo - ressaltou Esteves.
- As dunas da região recebem poluição. Há muito crescimento populacional. Todo esgodo da Bacia de Campos é jogado nas lagoas e, por sua vez, vai para o mar. Com o incremento da indústria do petróleo, a tendência é essa situação se agravar ainda mais.
- O Norte Fluminense tem experimentado grande crescimento, impulsionado sobretudo pela indústria de petróleo e gás. Grandes obras estão em andamento na região, inclusive nas proximidades do Parque Nacional de Jurubatiba.
- Não podemos, em nome do petróleo, devastar um ambiente tão frágil como este. Corremos o risco de, quando acabar o combustível fóssil, deixar o ambiente impróprio para as futuras gerações - reclamou o professor da UFRJ.
O Canal das Flexas, na Barra do Furado, bem próximo ao Parque de Jurubatiba, está sendo dragado. Há projetos para a instalação de estaleiros no local. Também há regiões que sofrem com a ocupação em áreas consideradas de grande valor ambiental.
- A região já sofreu forte modificação de seu aspecto natural por causa de ações do homem. Mesmo assim, ainda resta muito valor ambiental, sobretudo por causa das lagoas, inclusive aquelas que ficam secas em parte do ano - ressaltou o pesquisador da Fiocruz Salvatore Siciliano.
As áreas alagadas do Norte Fluminense já fizeram a região ser chamada de pantanal fluminense. Aterros sucessivos, porém, continuam modificando as características naturais, sobretudo nas proximidades da área litorânea.
- O chamado pantanal fluminense, para mim, é mais bonito do que o próprio pantanal mato-grossense. Aqui temos o mar, a planície e a Serra do Mar no fundo - disse Esteves - Infelizmente, já foram eliminadas mais de 200 lagoas na área. Até hoje estamos aterrando lagoas e brejos em Macaé.
Campanha do GLOBO mobiliza leitores para preservar golfinho
A toninha, que corria o risco de desaparecer sem que grande parte das pessoas sequer tomasse conhecimento de sua existência, foi a protagonista da campanha do Jornal O GLOBO para a sua preservação.
Em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz e apoio da ONG WWF-Brasil, a iniciativa também promoveu a limpeza das praias e coincidiu com a Rio+20, que teve a biodiversidade do oceano entre seus temas principais.
Foram realizados mutirões de limpeza nas praias de Copacabana, Ipanema e Leblon, com o apoio do movimento voluntário Rio Eu Amo Eu Cuido. Pesquisadores da Fiocruz fizeram palestras em dez escolas.
Quem quisesse vestir a camisa da campanha pôde usar a que foi desenvolvida pela grife Reserva. Também houve um concurso de cartazes da mostra Glob-all mix com o tema "Mar sem lixo, mar com toninha".
Durante a Rio+20, foi montada uma tenda/estúdio do artista plástico Vik Muniz no Aterro do Flamengo. Ele produziu uma obra de arte com a ajuda do público. Já na Casa de Cultura Laura Alvim, um debate reuniu especialistas do governo e da sociedade civil. No local, em primeira mão, o Secretário estadual do Ambiente, Carlos Minc, anunciou que a Ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira criaria a reserva marinha em Jurubatiba para a preservação das toninhas.
- O objetivo da nossa campanha pelas toninhas foi espalhar a mensagem de que todos podem e devem fazer a sua parte pela preservação do animal - disse Fernanda Araujo, gerente de marketing do GLOBO. - Foi gratificante ver o envolvimento das pessoas em todas as ações que promovemos e saber que a repercussão da campanha foi além das nossas expectativas.
Para o pesquisador da Fiocruz Salvatore Siciliano, a campanha pode ter feito a diferença para a preservação das toninhas.
- A campanha foi importante e muito feliz em aproveitar a oportunidade para identificar uma espécie esquecida, ou completamente desconhecida que precisa muito de uma ação para a sua conservação. A toninha era uma ilustre desconhecida. Só a difusão deste golfinho, que já não é mais desconhecido, é um enorme ganho.
Fonte: Jornal O GLOBO - Sessão "Planeta Terra" (páginas 4,6,7,8) em 10 de julho de 2012